Mill, Feyerabend “expulsos” da I Jornada em Defesa do Pensamento Científico na USP

segunda-feira, setembro 17, 2007

No dia 18 de setembro de 2007, o Instituto de Geociências da USP e a SBCR (Sociedade Brasileira de Céticos e Racionalistas) vão realizar a I Jornada em Defesa do Pensamento Científico. Eu não sei por que me lembrei do pensamento de dois pensadores gigantes: John Stuart Mill e Paul Feyerabend. Vou “ressuscitá-los” e “dar voz” a eles para saudarem este grande evento em suposta defesa da ciência.

John Stuart Mill (1806-1873), um pensador inglês que escreveu sobre economia, e teve uma grande influência sobre a economia, política e pensamento modernos. O seu livro On Liberty (1859 – êta data cabalística, sô!!!) argumenta que as pessoas deveriam ser livres para fazer o que quisessem desde que não prejudicassem as outras.

Paul Feyerabend (1924-1994), sim, ele mesmo, o “famigerado” e odiado autor de Contra o Método [São Paulo, UNESP] e do How to Defend Society Against Science [Como defender a sociedade contra a ciência]. Sou fã da epistemologia anárquica de Feyerabend porque ela “desnuda” a “arrogância epistêmica luciferiana” dos naturalistas filosóficos que seqüestram o bom naturalismo metodológico para avançarem uma agenda materialista, atéia, e cética globalizada.

Você já percebeu que quando alguns aspectos de determinadas teorias são questionados (mesmo cientificamente), a KGB da Nomenklatura científica traz à baila o tal de “método científico” para intimidar e demonizar os oponentes? Nada mais pueril cientificamente. Para Feyerabend, em graúdos, não existe um método especial, racional e científico, e que a ciência não merece o status exaltado que desfruta na sociedade moderna.

Na verdade, essa ciência, segundo Feyerabend, pode ser vista como uma ameaça contra a qual a sociedade deveria ser protegida. NOTA BENE: O Ministério da Saúde informa — a ciência livre para fazer o que bem entender [não é Mayana Zatz?] faz mal à saúde, oops, à sociedade! E precisa ser protegida contra esta “falsa ciência”!

John Stuart Mill no segundo capítulo Of the Liberty of Thought and Discussion [Da Liberdade de Pensamento e Discussão] do seu livro On Liberty [Sobre a Liberdade] Mills propõe uma tese até hoje considerada avant-garde: nós não somente devemos permitir, mas encorajar a diversidade de opinião. Quando a questão é Darwin não é isso que encontramos hoje nos campi e na Grande Mídia tupiniquim.

NOTA BENE: DEVEMOS PERMITIR E ENCORAJAR A DIVERSIDADE DE OPINIÃO. Infelizmente o que temos hoje em Pindorama é a síndrome dos soldadinhos-de-chumbo. Todo o mundo pensando e escrevendo a mesma coisa, e ninguém pensando e escrevendo nada. Diversidade de opinião? Ora, que se dane a diversidade de opinião, o que vale é a ideologia!

Mill relacionou três razões principais para esta posição saudável. Em primeiro lugar, as opiniões não devem ser suprimidas baseadas no fato de que nós as consideramos falsas, porque nós não devemos presumir que somos juízes infalíveis. Até mesmo na ciência, onde o mundo real deve agir como um árbitro da opinião (ou teoria), isto é obviamente verdade.

Alguns considerariam a história da ciência como sendo um progresso na direção de “verdades maiores”, mas esta idéia é problemática quando descrita em todos os detalhes.

Certamente que nós ganhamos a impressão de progresso geral, particularmente no que diz respeito à tecnologia, e alguém pode razoavelmente supor que isso seja um reflexo de progresso para uma compreensão mais exata da realidade; mas por outro lado, NOTA BENE, a tendência mais forte na ciência tem sido a descoberta inevitável de falhas nas teorias titulares que resultam em sua revisão substancial ou substituição. A teoria titular pode, atualmente, ter o peso de evidência a seu favor, mas isso não a torna verdadeira e nem falsas as teorias alternativas.

O argumento de Mill, me parece, até aqui, totalmente aplicável à ciência qua ciência. Eu não sei por que tenho uma “teoria titular” em mente que está atravessando séria crise epistemológica, e será revisada em 2010 depois de certo “culto à personalidade” passar... Vocês são cruéis, como sabiam que eu tinha o neodarwinismo em mente?

Em segundo lugar, mesmo que nós, de algum modo, tivéssemos certeza da verdade de nossas opiniões (ou teorias, no caso da ciência), a falsidade (ou a inferioridade) das opiniões (ou teorias) alternativas, nós não deveríamos sufocar as opiniões (teorias) alternativas, pela seguinte razão:

“Por mais que uma pessoa que tenha uma opinião forte não queira admitir a possibilidade de que a sua opinião pode ser falsa, ela deveria ser instigada pela consideração, por mais que a sua opinião seja verdadeira, que se não for plena, freqüente, e destemidamente discutida, ela será defendida como um dogma morto, e não como uma verdade viva.” — John Stuart Mill, On Liberty

Feyerabend enfatiza este segundo ponto quando aborda as questões da educação, e por que ele fala da ciência em termos de dogma. Os que pensam que a ciência deve ocupar um lugar exaltado no panteão do conhecimento tipicamente defendem esta posição porque a ciência pode, de algum modo, ser distinguida do mero dogma. A epistemologia considera que a natureza desta distinção toma muitas formas, como “evidência empírica”, “falseabilidade”, “capacidade de predição”, e assim por diante. Talvez a idéia comum é algum tipo de base na realidade tangível.

O que Feyerabend está dizendo é que a ciência pode ser, e tem sido, ensinada como dogma, e este aspecto que Feyerabend citou como problemático na educação moderna:
“Quando nós ensinamos um mito, nós queremos aumentar a chance de que ele será compreendido (i.e. nenhuma dificuldade de entendimento de qualquer aspecto do mito), crido, e aceito. Isto não faz nenhum mal quando o mito é contrabalançado com outros mitos: até o mais dedicado (i.e. totalitário) instrutor numa certa versão de cristianismo não pode impedir seus alunos de entrarem em contato com budistas, judeus e outras pessoas mal-afamadas. Isto é muito diferente no caso da ciência, ou do racionalismo, onde o campo é quase completamente dominado pelos crentes.” — Paul Feyerabend, How to Defend Society Against Science (ênfase no original).

O problema que Feyerabend percebeu aqui (baseado em Mill), é que a ausência de opiniões contrárias necessariamente transforma a ciência (ou qualquer coisa) em dogma. Uma idéia não é dogma quando ela enfrenta os desafios vigorosos de idéias alternativas. Um defensor da ciência pode interpor-se aqui afirmando que é, antes, na base da realidade tangível que faz da ciência um empreendimento não dogmático, ao contrário dos dogmas das concepções religiosas.

Se eu li e entendi muito bem a Feyerabend, eu discordo em parte disso: sem dúvida que é na base da realidade tangível que a ciência é ciência (e outras coisas não-ciência), mas, é justamente aqui que o Diabo mora nos detalhes, e Feyerabend tem razão: a ciência corre sério perigo em dois sentidos.

O primeiro é — certas teorias científicas podem ser defendidas dogmaticamente, e nós podemos afirmar que os períodos chamados por Kuhn de “ciência normal” (entre as revoluções) são exatamente esses períodos em que um dogma científico particular prevalece. O segundo é — a idéia absurda de que “o conhecimento científico” merece um status especial. Este status em si mesmo é um dogma, a menos que seja defendido à luz de competição séria de visões oponentes.

Não sei por que eu pensei aqui nas teorias da evolução e do design inteligente como um exemplo bem pedestre que a Akademia tupiniquim se recusa considerar. Exemplo bem recente: esta I Jornada em Defesa do Pensamento Científico que não admite o “contraditório” e demoniza os críticos como quem “não entende o que é ciência”, e suas teorias consideradas como “pseudociências”.

Os nossos céticos globalizados (estão errados porque deveriam ser salutarmente céticos localizados) devem se espelhar neste argumento bem radical de Mill: a “dissensão” é um ingrediente vital no entendimento humano. E aqui eu vou puxar as orelhas da galera dos meninos e meninas de Darwin: não fiquem somente com o conhecimento de um lado de uma questão, pois assim vocês sabem menos dela do que deveriam saber, se familiarizassem mais com o outro lado da questão. Isso também vale para alguns da teoria do Design Inteligente.

Mill prossegue dizendo com uma clareza e percepção agudas, “Tão essencial é esta disciplina para um entendimento real da moral e dos sujeitos humanos, que se os oponentes de todas as verdades importantes não existissem, é indispensável imaginá-los, e lhes fornecer os argumentos mais fortes que o mais hábil dos advogados do Diabo pode imaginar.”

NOTA BENE: Se nós não temos dissensão na sociedade, nós devemos inventá-la! Estaria a ciência, como querem esses céticos tupiniquins, isenta disso? Feyerabend acha que não, e eu creio firmemente que esta idéia radical dele deveria fazer com os filósofos da ciência em Pindorama parassem e pensassem um pouco mais, pois a idéia de “inventar dissensão” vai completamente de encontro com todas as tentativas de formalizar o progresso científico.

O terceiro ponto que Mill levanta é menos controverso do que o que acabamos de considerar, mas também digno de nota: que raramente (se alguma vez) em debates humanos alguma posição pode ser dita como estando completamente certa ou completamente errada. Isso também pareceria ser verdade incontroversa das discussões científicas. A dualidade da luz (onda/partícula) nos fornece um exemplo bem simples: em tempos passados argumentava-se que a luz tinha uma natureza particular; isso foi derrubado pelas teorias de ondas; hoje nós reconhecemos que nenhum modelo está completo e correto.

Moral da história para a I Jornada em Defesa do Pensamento Científico da SBCR e do Instituto de Geociências da USP considerarem cum granum salis: nós não devemos considerar as teorias antigas como completamente corretas mais do que nós consideramos as novas teorias como completamente erradas. As teorias antigas podem até ter tido alguma evidência que as corroboraram no contexto de justificação epistêmica, e quando as evidências não apóiam as teorias, a ciência pode exibir alguns “ciclos de revolução” como conseqüência deste fato.

Lamentável a atitude do Instituto de Geociências da USP e da SBCR: nesta I Jornada em defesa do Pensamento Científico faltou PERMITIR e ENCORAJAR A DIVERSIDADE DE OPINIÃO!!!

É Mill e Feyerabend, suas idéias andam pra lá de esquecidas porque contrariam o “apparatchik” ideológico do naturalismo filosófico da Nomenklatura científica.

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Sobre os ombros de um gigante que se baseou nesses gigantes abaixo:

Feyerabend, Paul, How to Defend Society Against Science, Radical Philosophy #11, Summer 1975.

Kuhn, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas, São Paulo, Perspectiva, 1998.

Mill, John Stuart, On Liberty, 1859.