Filosofia, não do jeito que faz e quer a USP

quarta-feira, novembro 19, 2008


JC E-Mail 3645, de 19 de Novembro de 2008.

18. 20 de novembro, dia mundial da Filosofia - Uma reflexão necessária: a formação acadêmica

“Filosofia e história da filosofia não se separam. Não se separam não porque não queremos, mas porque não podem. Seria a própria destruição da filosofia”

Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo e diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana (http://www.filosofia.pro.br). Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:

Há uma falsa contraposição nas discussões sobre como fazer filosofia. Particularmente no Brasil, a polêmica em torno dessa contraposição tem durado mais tempo que em outros lugares. Segundo tal contraposição, uns acham que estamos nos afastando da história da filosofia, e que isso é ruim. Outros acham que ainda estamos só fazendo história da filosofia, e isto seria uma triste tendência uspiana; deveríamos trabalhar com “temas e problemas” ou com a “tarefa do pensamento”.

Mas, na verdade, não é isso que ocorre e nem poderia ocorrer. Filosofia com “temas e problemas” (ou qualquer outra coisa) e história da filosofia não se separam. Não se separam não porque não queremos, mas porque não podem. Seria a própria destruição da filosofia.

Não há como investigar “temas e problemas” em filosofia ou mesmo em filosofia aplicada sem estar integrado no âmbito da história da filosofia. Não há como estar integrado no âmbito da história da filosofia sem se estar em alguma polêmica do interior desta e, portanto, sempre que se está aí integrado se está envolvido com algum problema.

Quem separa história da filosofia e discussão de temas e problemas não entendeu como é que a filosofia se faz e caminha. Há dois modos de não entender isso. Um primeiro é acreditando que a história da filosofia é algo como que um filme que passa na nossa frente, e nos conta algo que ocorreu.

Isso nunca acontece com a filosofia. A história da filosofia chama os filósofos para seu interior, de modo a convidá-los para o debate com filósofo do passado ou de presente. Chama também o iniciante em filosofia ou mesmo aquele que não é filósofo nem quer sê-lo, mas que é inteligente e consegue ler e ouvir de forma participativa. Caso o convidado não aceite o convite, ele nunca conseguirá compreender história da filosofia. A história da filosofia é diferente de todo outro tipo de história cultural. Ou se está no seu interior contribuindo com sua própria construção ou não se é alguém capaz de compreendê-la.

É claro que cada participação tem um grau de profundidade. Nossa capacidade de participar da história da filosofia vai da participação que serve só para nós mesmos até a participação que é altamente criativa e que acaba por servir a muitos outros. Os protagonistas deste segundo caso podem, então, integrar a historiografia da além de pertencer à história da filosofia.

Outro modo de não entender as coisas é acreditar que alguém pode filosofar, ou seja, pode dar conta de problemas filosóficos ou problemas cotidianos que podem ser abordados filosoficamente, sem que se tenha feito isso já no interior de uma com filósofos do passado e do presente, ou seja, já no âmbito da história da filosofia. Não há como fazer tal coisa.

Um tema e um problema, por mais inédito que seja, tem um pé em algo que vai ser sua tradição. Os filósofos mais alheios ao chamado conteúdo “histórico” sempre foram grandes historiadores da filosofia. Às vezes nos enganamos e achamos que um bom filósofo que escreve ensaios não históricos não é historiador da filosofia, mas, em geral, ele é um historiador da filosofia.

O estilo do ensaio que coloca para o público omite isso explicitamente, mas ele, na hora de escrever, sabia o que estava falando do ponto de vista histórico e sabia muito bem como que o debate o levou a escrever do modo que escreveu. Ele estava de fato integrado na história da filosofia.

Portanto, cada vez mais o filósofo atual é acadêmico, e isso no sentido de que ele precisa passar por um período de formação que envolve treinamento dado em universidades. É claro que esse treinamento, no Brasil, tem deixado a desejar.

A graduação em filosofia e nossos mestrados e doutorados padecem dos males gerais do nosso ensino, adicionados aos males específicos de uma falta de tradição filosófica mais substancial. Mas, ruim com a universidade, pior sem ela. Quem se recusa a dar crédito para a universidade, em geral faz algo bem pior do que o que se faz na universidade.

Poderíamos melhorar nosso treinamento para formar filósofos e professores de filosofia. Minha sugestão é que as escolas ficassem atentas para esses elementos abaixo.

1) A graduação não deveria privilegiar especializações precoces; a amor a todo tipo de filósofo e a todo tipo de área filosófica e cultural deveria ser uma regra. Na graduação não há razão para se gostar mais de Descartes que de Heidegger ou Sade. Muito menos há razão para se desprezar filosofia medieval diante de filosofia moderna. Cada professor de curso de filosofia, uma vez que em geral é um scholar de um filósofo, um estudioso (dado seu mestrado e doutorado), deveria ficar atento para saber que o que ele tem de mostrar na graduação é a filosofia em geral, e não o “seu” filósofo. Deveria, inclusive, se perguntar se essa idéia de “seu” filósofo já não é uma formação equivocada dele mesmo, que o faz incapaz de criar e de poder dar melhor consistência para seus estudantes.

2) A formação na graduação deveria insistir no filósofo escritor, ou seja, em alguém que deve ter capacidade de escrever corretamente, de modo elegante e, em alguns casos, de modo jornalístico. Para tal é necessário que o próprio professor escreva corretamente e corrija os alunos. Qual a razão de não mais se corrigir aluno? Nenhuma! Ainda mais na filosofia, onde a produção do texto é algo primordial.

3) A formação na graduação não pode descuidar de uma língua estrangeira. Ou se sabe uma língua estrangeira já na graduação em filosofia ou se estará condenado a ser um profissional de terceira categoria. Nesse caso, não há razão para insistir na prioridade do alemão e do francês. O inglês deveria ser algo tão básico quanto o português nos nossos dias.

4) Todas as principais abordagens filosóficas deveriam ser incentivadas – neste caso, deveríamos pensar a filosofia a partir das grandes correntes. Não se trata da “filosofia a partir dos ismos”, e sim da filosofia a partir das grandes concepções sobre como filosofar e o que é o objeto da filosofia. O exemplo abaixo, no qual tomo a filosofia moderna e contemporânea, deve servir para que o leitor compreenda o que quero dizer.

Quando Bacon abre a modernidade propondo uma teoria do erro, a crítica dos “ídolos”, ele traça um panorama geral que diz que nos equivocamos a partir de defeitos de fabricação que todos nós possuímos. São problemas da nossa natureza humana (ídolos da tribo) ou de nossa situação individual (ídolos da caverna); são também as dificuldades dadas a partir de nossa associação que é feita através da linguagem, sendo esta, por sua própria origem vulgar, imprecisa (ídolos do foro); e, por fim, também erramos pela filosofia e ciência (ídolos do teatro).

Podemos levar a sério esse panorama prospectivo de Bacon e ver que a filosofia, depois dele, veio como que um detetive tentando encontrar o responsável pelo equívoco ou erro na razão (século XVII e XVIII), na história e sociedade (século XIX), na linguagem (século XIX e XX) e, enfim, na ciência e filosofia (XX e XXI). Ao brincarmos de ler esse grande conto de detetive vamos eleger esses suspeitos do crime – do erro – como objetos da filosofia e, então, teremos de nos envolver com cada um deles. Sem nos envolver com cada um desses objetos não acompanharemos a investigação do detetive – a filosofia.

Agora, devemos pensar também que para cada objeto aparecem detetives auxiliares e competidores que fazem uma investigação particular e de modo diferente. Assim, para cada século apontado acima, temos vários tipos de investigação – elas criam os “ismos”. Mas eles são secundários em relação ao objeto. É a partir do objeto que nos envolvemos com os filósofos e os acompanhamos no processo de ver se o apontado culpado é mesmo o culpado.

Esse exemplo serve apenas se aceitamos, de ponto de partida, a visão de Bacon sobre a modernidade. Mas, o leitor deve considerar, trata-se apenas de um exemplo, para que se entenda onde quero chegar, que o mostrar que uma visão global da filosofia passa pelos objetos eleitos e vice-versa, e que um curso de graduação deveria dar conta disso.

Essa é uma forma gostosa de lidar com a filosofia. Depende de erudição e competência do professor de graduação, que não pode ser mero professor, tem de ser filósofo. Mas, se não sonharmos grande e se não acreditarmos que podemos fazer isso, nada conseguiremos.

Bem, volto aos quatro itens citados. Nenhum deles é mais ou menos importante. Eles devem ser levados em consideração no conjunto. Há um modo de fazer isso? Claro que há. Bastaria começar a pensar em uma faculdade particular gratuita e com alojamento para alunos que pudesse, com essa estrutura e essa autonomia de base, criar esse tipo de ensino. E não é impossível de fazermos isso no Brasil. Talvez um modelo assim pudesse arrastar outros, em outras faculdades.