Mayana Zatz 'profetiza': O futuro é brilhante!

terça-feira, maio 25, 2010

JC e-mail 4016, de 24 de Maio de 2010.

20. "O futuro é brilhante", entrevista com Mayana Zatz

Geneticista da USP defende mais ousadia nos estudos com células-tronco e revela avanços da área

A notícia de que cientistas do J. Craig Venter Institute, dos EUA, desenvolveram a primeira célula controlada por um genoma sintético no mundo alegrou a bióloga molecular e professora do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Mayana Zatz. Eufórica seria dizer muito. Não que Mayana não seja uma entusiasta das descobertas no campo das biociências, mas seu lado racional, como em muitos cientistas, fala mais alto.

Afinal, como uma das maiores geneticistas e pesquisadoras sobre a aplicação de células-tronco no combate a doenças neuro-musculares do mundo, ela sabe que a distância entre as descobertas e seus resultados práticos é cada vez menor, mas ainda grande.
- É um genominha sintético extremamente simples, mas é um salto gigantesco - diz ela, entre a euforia e os pés no chão, lembrando que há bactérias do bem (como a que atua no leite para produzir queijo). O futuro é brilhante, mas vai exigir o dobro do trabalho, dos recursos, de pesquisadores, um desafio enfim.

Mas a esperança não morre nunca e no próximo dia 16 de junho, Mayana embarca para São Francisco, nos EUA, onde participa do Congresso Internacional de Células-Tronco e de onde sempre volta, diz ela, "de quatro" com as novidades e avanços das pesquisas genéticas.

Ali ela discutirá com milhares de cientistas os avanços de sua equipe na USP com o uso de células-tronco do tecido adiposo - a infame gordura - para a fabricação de tecido muscular. É um estudo ainda em fase inicial e restrito a animais, mas que, dependendo da sua evolução, pode representar uma grande esperança na cura de doenças neuro-musculares. E uma fila de doadores para lipoescultura na porta de seu laboratório.

Leia a entrevista:
- Qual a importância do desenvolvimento da primeira célula controlada por um genoma sintético?

Craig Venter é um danado. É um genominha sintético extremamente simples, mas é um salto gigantesco. Por hora, estamos a anos-luz de um genoma humano sintético, mas a gente pode enxergar no futuro enormes potencialidades. Imagine o caso de genes defeituosos. Poderíamos sintetizar um gene normal da pessoa e substituir o defeituoso, evitando a doença. O tratamento genético atual é feito na base da seleção. Você pode selecionar os genes não defeituosos e esperar que não mudem. Mas não temos o poder de alterar genes. Isso pode mudar agora. Vai levar tempo e dar muito trabalho, mas pode mudar.

- Que novidades podemos esperar do congresso internacional?

Sempre terá novidades. São milhares de cientistas trabalhando com células-tronco. Nós trabalhamos com modelos animais e doenças genéticas, ou seja, com animais que têm doenças genéticas semelhantes às humanas. Alguns são modelos naturais: o animal tem uma mutação genética parecida com a humana, o cientista descobre e faz uma colônia de células-tronco para injetar e pesquisar a doença. Outro ramo é o dos animais transgênicos. Você sabe qual mutação causa a doença no homem, fabrica um camundongo com a mesma doença e nesse animal injeta células-tronco na busca de cura. Fazemos isso aqui há alguns anos comparando células-tronco de diferentes fontes e injetando em animais para ver como funcionam.

- Qual é o foco?

Nosso foco são as doenças neuromusculares. Minha primeira pergunta é: qual a melhor célula-tronco para formar músculo? Estamos injetando células-tronco de tecido adiposo (gordura), de polpa dentária, de cordão umbilical, de diferentes fontes, e comparando qual a que melhor se transforma em músculo.

- E qual a fonte mais promissora?

Para a formação de músculo são células-tronco de tecido adiposo. Pegamos células-tronco do tecido adiposo humano, transformamos em proteínas musculares e injetamos em camundongos, sem rejeição. Isso nos anima com a perspectiva de que não deverá haver rejeição em humanos.

- Mas é preciso pesquisar mais. Imagine a fila de doadores que o instituto terá de gente acima do peso que quer se livrar dos seus pneus em nome da ciência...

Tem gente que me pergunta: "se eu doar, isso paga a minha lipo?" (risos) Eu vou ter que começar a pagar lipo para todo mundo! Por um lado, é verdade que o tecido adiposo é um dos mais fáceis de se obter doadores. Mas por outro, as melhores células-tronco para a transformação em músculo não são as dos obesos. São as dos atletas que estão bem, mas têm um pneuzinho. Essas gordurinhas é que são ricas em células-tronco. São trabalhos recentes aqui do laboratório. E agora, para ter certeza, estudaremos um grupo maior de animais.

- Há um país à frente em pesquisa com células-tronco?

Estão todos tateando mais ou menos no mesmo patamar, mas em congressos você percebe saltos individuais, descobertas que realmente fazem a diferença, como a do Craig Venter. A descoberta das células IPS (sigla em inglês para Induced Pluripotent Stem-cells) pelo pesquisador japonês Shinya Yamanaka é outro exemplo.

- Em seu blog, a senhora fala com animação desta nova tecnologia.

É uma descoberta e tanto, pela qual Yamanaka está sendo indicado ao Nobel. Numa pesquisa rotineira, se eu pegar uma célula da sua pele e fizer cultura, a única coisa que ela pode me dar é pele, porque já está diferenciada para fazer só aquilo. O que Yamanaka fez foi pegar uma célula adulta da pele e reprogramá-la para se comportar como uma célula embrionária, ou seja, uma célula-tronco com potencial embrionário, capaz de se transformar em qualquer tecido. Então eu pego uma célula de pele e, com a tecnologia, posso fazer células nervosas, ósseas, qualquer célula.

- E qual a importância disso para ode tratamento genético?

Você pega um paciente que tem uma doença genética com um defeito que ataca, por exemplo, o cérebro. Eu não posso pegar o cérebro dele para estudar. Mas eu posso pegar uma célula da pele dele, transformá-la em célula nervosa e aí, nestes neurônios, em laboratório, posso testar formas de reverter os processos que levam à doença. Posso testar drogas. E posso até comparar pacientes.

- Como assim?

Uma coisa que nos intriga muito são pacientes que têm o mesmo defeito genético e quadros totalmente diferentes, inclusive entre irmãos. Um irmão tem sintomas da doença de forma acelerada e outro, um quadro leve. O que protege uma pessoa que não protege outra? Esse é outro caminho importante para a pesquisa de tratamento e tudo poderá ser estudado a partir das células IPS.

- A tecnologia já está dominada?

Já está, mas não é fácil. Precisa ficar muito tempo no laboratório para obter a célula, infectá-la, fazê-la crescer e se transformar no que você precisa, enfim, é muita ralação (risos). A vantagem da célula embrionária é que ela se diferencia em todos os tecidos. A desvantagem é que ela é muito desobediente. Então às vezes você quer que ela se transforme em músculo, mas ela resolve que quer ser osso. É que nem um bebê, atenção 24 horas por dia. Você não pode largar.

- E o potencial destas células IPS?

No futuro, se espera que elas possam ser usadas para substituir tecidos. Por enquanto não, porque para transformá-las em células embrionárias é preciso injetá-las com vírus e a gente ainda não sabe como esse vírus pode afetar o organismo mais tarde. Hoje são fantásticas para pesquisa, mas não podem ser usadas para terapia celular.

- Em que medida restrições à clonagem prejudicaram a pesquisa?

Curiosamente, eu acho as células IPS dão mais chances a quem quer fazer clonagem humana - não estou dizendo que eles vão conseguir, mas que podem tentar - do que a tradicional técnica de transferência de núcleos, que foi usada na ovelha Dolly. Nessa tecnologia, o material genético tem que ser inserido em um óvulo humano, mas óvulos humanos são muito escassos, então o controle sobre essas pesquisas é grande. Mas os chineses já fazem clones de camundongo com células IPS, sem necessidade óvulos. As células embrionárias são colocadas diretamente no útero. E nem precisa ser humano. Pode colocar num útero de uma vaca, de uma coelha e ver o que acontece. E eu tenho certeza que tem gente tentando isso porque tem maluco para tudo. E isso os comitês de ética não controlam porque eles só fiscalizam as universidades e os institutos, que precisam de dinheiro para pesquisa. Mas uma clínica particular ninguém pode controlar. Tudo que se proíbe neste ramo tem escape, como na internet. A proibição acaba prejudicando só os pesquisadores sérios.

- Até que ponto a religião atrapalha o desenvolvimento científico?

Aqui foi uma briga enorme, mas hoje os grupos religiosos brasileiros não atrapalham muito. Apesar do povo brasileiro se dizer católico, as pessoas são muito sensatas sobre o que lhes convém.

- Por que não acelerar a aprovação testes para doenças que podem provocar a morte rapidamente ou para as quais não existe tratamento?

Temos que ousar mais. Sempre se dizia que os países subdesenvolvidos testavam drogas para os ricos. Agora é o contrário. Os comitês de ética têm tanto medo do novo que alguns tratamentos em teste no Primeiro Mundo não chegam aqui. São tratamentos que a gente não pode prever os resultados. Mas se falamos de doenças que não possuem alternativas, por que não testar o que acena com algum resultado? Eu não estou falando em fazer loucuras. Falo em estudos sérios. Como injetar numa pessoa doente células-tronco de outra pessoa, saudável, diferentemente do que se faz hoje, que é injetar células da própria pessoa para evitar rejeição.

- A senhora costuma discutir os limites éticos da reprodução assistida. É possível que a sociedade caminhe para um estágio de pré-escolha genética de um filho? No caso de doenças faz sentido, mas é ético escolher o sexo ou outras características?

Você já leu sobre casais surdos que fazem questão de ter filhos surdos? Ou de casais de anões que querem filhos anões? Muitos pais vão para a terapia de implantação só para ter filhos que eles projetam como ideais. Acho isso complicado. Eu não tenho nada contra minorias ou o direito de uma criança ao silêncio, como alegam os pais surdos, mas o ideal é que isso seja feito por opção da pessoa e não por imposição de outra. É muito comum, para quem tem filho adolescente, ouvir deles: "Mas eu não pedi para nascer!". No futuro, os filhos vão dizer: "Mas eu não pedi para nascer louro! Eu não pedi para ser gordo! Eu não queria ser alpinista, eu queria ser músico!" São pais querendo que os filhos saiam à sua imagem ou sejam o que eles nunca puderam ser. Uma coisa é um casal que possui uma tendência genética a determinada doença querer que o filho seja saudável. Outra é o casal, deliberadamente, desenhar um filho segundo suas conveniências. É preciso estabelecer limites.

- Os chamados embriões salvadores - concebidos como doadores para um irmão doente - estão se popularizando no Brasil?

Ainda se discute se isso é ético ou não é ético, mas o fato é que salva vidas. Se os casais têm filhos pelos mais variados motivos, às vezes até para salvar um casamento, porque não se pode salvar um filho com outro? Nos EUA, a lei permite que se faça.

- Aqui não temos legislação específica. Nos EUA e na Europa é comum pessoas doentes se oferecerem como cobaias. Como é no Brasil?

- Recebo todos os dias zilhões de emails de pessoas no Brasil se oferecendo para ser cobaias. Por isso temos que ter tanto cuidado quando publicamos alguma coisa. Tentamos com pessoas que sofrem de doenças para as quais não há alternativas. Não fazemos nada em humanos ainda, mas pretendemos fazer.

(Gilberto Scofield Jr)

(O Globo, 23/5)

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